Riscos da Sociedade Irregular (Sociedade de Fato) e como atenuá-los

No ecossistema das startups, é muito comum que não se ultrapasse a fase da ideação. Por conta disso, muitas vezes, os empreendedores unem-se, desenvolvem a ideia e um MVP (Minimum Viable Product1), colocam o seu projeto à prova, mas, por não terem um retorno do mercado, optam por pivotar ou, até, simplesmente abandonar o projeto.

Ocorre que, além desse cenário acima, é possível que a startup passe rápido pelo early stage2 e acabe crescendo sem conseguir parar e se estruturar. Isso implica, muitas vezes, firmar contratos com clientes, parceiros, fornecedores e colaboradores, mesmo sem ter se formalizado ainda; ou seja, sem a prévia constituição de uma pessoa jurídica. Esse caminho pode trazer grandes dores de cabeça para os empreendedores, porque fará com que haja uma confusão entre a personalidade dos sócios e da sociedade, a qual, embora já exista na prática, não existe formalmente e, portanto, não detém personalidade própria.

A afirmação de que uma sociedade não possui personalidade própria é desdobramento da seguinte situação: sociedades empresárias são abstrações; elas não existem fisicamente. Ninguém pode tocar, abraçar, conversar com uma startup ou uma sociedade empresária tradicional; isso é sempre feito por intermédio de seus represantes (pessoas naturais). Por sua vez, as pessoas naturais (físicas) são diferentes nesse aspecto; o seu nascimento ocorre no plano fático, são atestadas pelo médico responsável pelo parto (“nascimento com vida”3) e tal documento será usado como base para o registro do nascimento da pessoa. Esse registro, por sua vez, conterá, como data de nascimento, o dia do parto, e não o do registro.

Com as sociedades empresárias, é diferente. Por elas serem uma abstração, o dia do seu “nascimento” é o dia do registro dos seus atos constitutivos. No caso das sociedades limitadas (formatação mais simples e econômica e, por isso, adotada pela imensa maioria das startups), ela passa a ter personalidade jurídica própria (distinta dos seus sócios), a partir do registro do contrato social na Junta Comercial do Estado da sua sede.

Ocorre que, mesmo antes da formalização, uma série de negociações e atos são realizados pelos empreendedores. O risco decorrente disso é que são os próprios sócios que responderão pelos atos praticados, por não existir ainda uma empresa constituída. Isso significa responsabilidade perante clientes, fornecedores e, inclusive, perante o Fisco, decorrentes da prática da atividade empresarial.

A sociedade sem registro na Junta Comercial é denominada, pelo Código Civil, como sociedade em comum. O grande risco da sociedade em comum é que a lei esclarece que a responsabilidade dos sócios será solidária e ilimitada, ainda que haja a execução prioritária do chamado “patrimônio especial”. Esse patrimônio nada mais é do que eventuais bens móveis adquiridos (ex.: computadores ou outros equipamentos) ou valores aportados para desenvolvimento do projeto. 

Ocorre que, não sendo suficiente esse patrimônio especial (o que é bem comum para startups, em que o “ativo” é a capacidade intelectual e criatividade dos sócios), os patrimônios pessoais dos empreendedores responderão solidária (todos respondem pela integralidade da dívida) e ilimitadamente (enquanto houver débito da sociedade em comum, o patrimônio dos sócios seguirá suscetível).

 Como se sabe, a sociedade limitada recebe esse nome justamente por isso: com a formalização da sociedade, a responsabilidade dos sócios fica limitada ao valor de suas cotas sociais, desde que integralizadas4. Essa proteção, contudo, não é estendida para as sociedades irregulares, antes da sua formalização. Nesse caso, portanto, eventual credor poderá propor a ação em face de todos os sócios, e não necessariamente apenas em face da sociedade

Como então seria possível atenuar esses riscos? Se os empreendedores entendem que não é hora de formalizar a sociedade ainda, a alternativa que surge é um acordo escrito entre os sócios pré-formalização. No mercado de startups, esse documento é comumente chamado de Memorando de Entendimentos. Nesse documento, será possível aos sócios estabelecerem as “obrigações assumidas por cada contratante em relação à sociedade e aos demais, bens destinados à sociedade, despesas havidas, responsabilidade sobre atos praticados e dívidas assumidas diante de terceiros etc.”5 

Logicamente, esse acordo só produzirá efeitos entre os sócios, mas será importante para deixar tudo às claras entre eles, especialmente se algum credor atingir o patrimônio pessoal de todos. Isso porque será possível, posteriormente, o sócio considerado responsável ter de restituir os demais, se isso tiver ficado pactuado no acordo escrito. As possibilidades são diversas e cabe um alerta essencial: esse período prévio à formalização deve ser apenas temporário; validada a premissa e o MVP, não se deve mais postergar sua formalização, para proteção dos sócios e de seus patrimônios pessoais.

Por fim, é preciso salientar que, por conta dos grandes riscos da sociedade em comum, a adoção de medidas limitadoras dos riscos é apenas paliativa. A melhor alternativa sempre será a formalização da sociedade empresária, com a inscrição dos seus atos constitutivos na Junta Comercial, tanto por conta da segregação patrimonial entre a pessoa jurídica e os sócios, quanto na sua posição perante o mercado e investidores. Uma sociedade formalizada e com instrumentos societários tecnicamente bem desenvolvidos inspira muito mais credibilidade e reduz o risco para eventuais aportes de capital.

Para maiores informações sobre Direito Societário e Startups, acompanhe nossas postagens e aguardamos comentários e dúvidas! 

Saiba mais:

https://www.caputoadvogados.com.br/blog/contrato-social-para-startups-fuja-do-modelo-padrao-da-junta-comercial

https://www.caputoadvogados.com.br/blog/a-importancia-do-acordo-de-cotistas-para-startups

 


1 “No mundo das startups, porém, MVP é a sigla para Minimum Viable Product, ou produto mínimo viável. […] O MVP é uma versão simplificada do seu produto, com suas principais funcionalidades.” (LEAN Startup e MVP: entendendo e aplicando os conceitos. SEBRAE, 2014. Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/artigosInovacao/entenda-o-que-e-lean-startup,03ebb2a178c83410VgnVCM1000003b74010aRCRD#:~:text=No%20mundo%20das%20startups%2C%20por%C3%A9m,produto%2C%20com%20suas%20principais%20funcionalidades. Acesso em: 07 jul. 2022).

2 Early stage é o estágio inicial de uma startup, que pode compreender diferentes momentos, como a captação dos primeiros recursos, o lançamento de produtos ou serviços em versão beta, prototipagem e testes, processos de crowdfunding ou a entrada em um programa de aceleração ou incubação. São os passos iniciais que moldam um novo negócio para que ele se solidifique e futuramente tenha peso no mercado.” (COZER, Carolina. Você sabe quais são os diferentes estágios de crescimento das startups? Whow, 2021. Disponível em: https://www.whow.com.br/voce-sabe-quais-sao-os-diferentes-estagios-de-crescimento-das-startups/. Acesso em: 07 jul. 2022).

3 “No sistema positivo brasileiro, reiteramos, a personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida, desde o momento em que o recém-nascido completou o nascimento e adquiriu vida autônoma, capaz de respirar independentemente da participação materna […]” (PAIVA, J. A. Almeida. A personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida. Consultor Jurídico, 2003. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2003-nov-24/personalidade_civil_comeca_nascimento_vida#:~:text=No%20sistema%20positivo%20brasileiro%2C%20reiteramos,a%20concep%C3%A7%C3%A3o%2C%20os%20direitos%20do. Acesso em: 07 jul. 2022).

4 Código Civil. Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.

5 MAMEDE, Gladston. Direito societário: sociedades simples e empresárias. 10. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2018. p. 29.

 


*Rafael Duarte, Sócio do escritório Caputo Advogados, com atuação especializada em Empresas de Base Tecnológica e Startups. Pós-graduando em Direito Digital e Proteção de Dados; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado Direito Imobiliário pela Faculdade Legale/SP; Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale/SP; Mentor em programas de empreendedorismo e desenvolvimento de negócios inovadores, tais como Inovativa Brasil, entre outros; Membro da Comissão Direito Imobiliário da OAB/RS; Membro da Comissão de Direito Sucessório do IBDFAM/RS.

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